quinta-feira, 17 de dezembro de 2009






melodrama

tenho os olhos escuros, da escuridão.
os meus pés são marcas e já não são
os meus pés, contradizem-se. a distância,
portanto, é algo de irrelevante, porque sou
apenas de um sítio. apenas o fogo crepitando
para lá do meu alcance, apenas a luz,
a destruição do lume
sorrindo dentro do meu próprio corpo.
eu entro e não me queimo.



(foto: joana moreira, mariana lopes)

quarta-feira, 4 de novembro de 2009


a língua pelos lábios, estão magoados. às vezes
penso que fui uma esfinge diabólica, uma clarabóia
de uma sala barroca sem, masculina ou feminina,
vontade de estar. são as vezes que tenho, mais nada.
sinto um hálito no meu pescoço, o rumor de uma cortina
de chuva, caindo na minha pele, alucino?
ele é uma pergunta, um ciclo do qual me esqueço sempre.
é uma peça que ainda não reconheço, entristece-me
vê-la. gostava de ser aquela árvore que está ali, ou a sua sombra.
nelas estaria a salvo. não tenho fome, o meu estômago
está alienado pelo pensamento, talvez nem exista já.
brilha nas minhas folhas a felicidade dos pássaros,
ainda que não o saibam, a vida deles é a única,
a que significa realmente a palavra,
limpa de Objectivo, nela não cabe nada
porque não tem espaço.
o meu corpo está adormecido na terra, ainda.
sem mistério, o sentido é para dentro.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009



irmã,
os corpos estão cansados. na escuridão, iluminados
por uma fome incompreensível. bebemos de um charco,
eliminámos uma sede sem reflexo, na escuridão,
cercados pela questão sempre inacabada,
pelo silêncio, que nunca devolveu a resposta.

os corpos estão muito cansados, repousam
nas margens de um quadro que não tem dimensão,
nas faixas brancas, onde o outro que somos
ainda é ausente, as suas sombras diluem-se
pelas fissuras no cimento, como se fossem engolidas,
sugadas por qualquer coisa de dentro da própria terra,
não são tão importantes assim.

irmã, na infância não encontro nenhuns pedaços,
nada que tenha resistido, tudo é plano quando regresso,
como se a criança que antes era continuasse a viver,
sem tempo, sob o meu olhar.

terça-feira, 13 de outubro de 2009



a morte:

primeiro minuto


Neptuno ou outro planeta, luz azul ao fundo,
os meus pés são dois arados
enferrujados,
já só sinto um leve torpor, o ardor dos outros anos
já não tem lenha. Venha
neptuno ou outro,
que, com alvéolos brancos e limpos,
consiga ligar novamente todos os meus pedaços, façanha
menor, os remendos são usados. Verdadeiramente,
não vem ninguém. aqui estou submerso,
nesta linha tão fina, desfiz a bainha
do tempo, desse tempo perverso,
que vasculha as minhas entranhas,
é estranha a comida que pede.

Já não quero saber, neptuno, plutão, ou outro,
Outro qualquer, satélites talvez, algum que seja,
pequeno, não faz mal. Talvez tenha ainda solução,
lenha, não, não, não suporto mais
Arder.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

a máquina
não somos assim, simples, simples sim os comportamentos,
os cemitérios, as somas, simples, os critérios
para a solução. nós não somos assim, tão sérios ou descontentes,
não, a solução para tudo é uma questão, ou melhor, talvez,
uma emancipação de todo o tipo de saber, uma alucinação,
ou loucura de vez, que é a verdadeira razão, ou então.
somos nós desmaiados na superfície dos barcos,
desmaiada também, somos uma coisa heterogénea, gémea, ou então,
uma máquina desactivada, desmaiados, macho, fêmea,
ou aquilo que morre, que dá pena, está parada,
perdida numa praia infernal, ou aquilo que dói,
uma palavra, uma cena, que nem é voz, desmaiada,
afinal. é uma empena, um corte, um choque, que rói
a última parte que é nossa, que se merece, sem ideologia:
natural.

domingo, 20 de setembro de 2009


a noite pára e já não a sei de outra forma,
interminavelmente como ruídos na minha pele,
depois de adormecer. como se morrer fosse
só mais um minuto e depois acabasse.
debaixo de um lençol, escondida atrás de uma porta,
cansada, à sombra de uma árvore. vejo-a, sempre,
é uma lente, é a lente pela qual consigo
manter-me dentro de mim mesmo.
espera-me,
inesperadamente, porque o mistério que contém
não é mais do que ser surpresa, não é mais
do que um alívio do peso que é ser.



quarta-feira, 16 de setembro de 2009



ensaios iii



o grito da gaivota acorda a mulher
e ela amamenta o filho na sombra
o carro passa é uma onda
o barulho
que acorda o leite
os gritos devem ser ignorados
porque a cidade é grande
e não há tempo para a solidão.

o grito da gaivota espeta alfinetes
na mão que pisa a testa
do filho que adormeceu, sozinho.
a mulher deixou-se levar pela corrente
que saiu até à secura
já não tem mais nada a não ser
o som da onda que passa
tragando-a.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

ensaio final


conheço todos os pássaros
que sobrevoam sobre o meu olhar,
todas as espécies, como se fosse
uma enciclopédia completa.

eles não me dizem nada,
talvez porque não carreguem nenhum tipo
de mensagem, talvez porque
não gostem de humanos.
e alguns voam sozinhos, desenhando
uma linha que não é harmoniosa,
estranhamente desorientados
pela luz,
talvez não queiram aterrar,
cansados das árvores, dos prédios,
das casas, dos muros,
do próprio chão.
será que se levantar o braço,
pensei, eles me vejam,
me entendam? ou simplesmente
me queiram, e possa ser usado
para construir o ninho?

depois, não quero pensar mais neles,
há qualquer coisa nas asas que me inspira horror,
nos seus olhos consegue ver-se tudo, como num sonho.
o próprio nome traz em si uma realidade,
um lugar,
extremamente assustador.

domingo, 26 de julho de 2009

ensaios v
por vezes os ponteiros dos relógios
surgem-me como alfinetes breves
incisões na pele pelas quais desconfortavel-
mente me tento suster. por vezes
chegam simplesmente e eu sei
que eles estão ali como um
pesadelo são como sinos fúnebres
badalando para lá do meu sono.
por vezes são como lâminas
frias e descontentes
tesouras obcecadas pela separação
por vezes são vozes roucas
ou meros murmúrios resplandecentes
num céu carregado quase negro
trágico
como se quisessem algum destino.
que força existe por detrás deles
por detrás do deus?
há uma brecha porém algures
onde posso enfiar a boca
esperando
que o ar ao entrar
me liberte.

quarta-feira, 15 de julho de 2009




apontamento
o silêncio depois de qualquer coisa
é o que contém a maior violência.
os cigarros fumam-se numa noite sentada
à margem: inclinamos a cabeça como se
concordássemos. mas quem somos?
nós? hoje já não há soma hoje já não há
nada. o fumo é uma multidão que estremece
desordenadamente, eu não decido.
não há ninguém depois de mim e mesmo eu
estou destruído, posso parar de falar.
fumemos então porque precisamos de respirar,
porque endoidecemos em todos os instantes,
como ondas assimétricas, vagas descuidadas,
o sangue, o meu sangue, é como uma maré
esgotada: cansada de se repetir.
animais animais animais
rochas algas grãos recifes corais
palavras e não-palavras, tudo o que é por dentro
que saia, para que se conheça a natureza,
para que não tenhamos mais que inventar.
talvez não estejamos em nós
mas na nossa sombra,
talvez tudo seja apenas uma sombra
do que verdadeiramente
é. uma camada de pó sobre
o verdadeiro sentido.

quinta-feira, 2 de julho de 2009


fôlego

prendemos o fumo
na respiração, nas próprias árvores.
é um antibiótico agnóstico
para suster os olhos apenas
pelos nervos. sem músculos.
ou vasos. vejo na mesma. os
carros que passam trombudos
como se lhes estivessem a roubar
o mundo. inalamos ou inalámos
maiusculamente como se fôssemos
letras que não contassem o tempo.
ou música que não se gastasse.
e o sangue renova-se automaticamente,
pudesse eu vê-lo, zumbindo
como uma resistência. sem
transcendência ou mistério, somos
uma espécie de raiz antiga, sem
nome. desejando a
superfície.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

não o sonho
Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim
e agora só me lembro pelo lado de fora.
manuel antónio pina

sábado, 20 de junho de 2009

Zebra
liberta
no campo
o teu belo
cavalo branco
alain serres

quinta-feira, 4 de junho de 2009

no meu amor já não há desconhecimento
mas um sabor a luxúria esgotada a meio da viagem
como se gota a gota se fosse esvaindo a vantagem
de sermos assimétricos. num fogo invencível
e esfomeado deixamos inflamar-se a palavra que dizia tudo
até ao mais pequeno significado sem qualquer tipo de derrota.
o resultado foi a fronteira inexacta da minha cinza
sem saber ao certo o que dividir.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Lorelei

Não existe nenhuma noite para nos afogarmos:
lua cheia, um rio correndo
negro sob um suave reflexo de espelho,

névoas azuis da água gotejando
de malha para malha como redes de pesca
embora os pescadores durmam,

torres sólidas do castelo
multiplicando-se num espelho
todo ele silêncio. Mas estas formas flutuam

em minha direcção, perturbando o rosto
da quietude. Do nadir
erguem os seus membros plenos

de opulência, cabelos mais pesados
que o mármore esculpido. Cantam
um mundo mais cheio e límpido

do que aquele que existe. Irmãs, a vossa canção
traz uma carga demasiado pesada
para ser escutada pelas espirais do ouvido,

aqui, num país onde um sensato
senhor governa equilibradamente.
Ao serem perturbadas pela harmonia

que existe além da ordem deste mundo,
as vossas vozes fazem um cerco. Estais alojadas
nos recifes em declive do pesadelo,

prometendo um abrigo certo;
de dia, estendem-se para além dos limites
dá inércia, das saliências

que existem também nas altas janelas. Pior
ainda que esta canção de enlouquecer
é o vosso silêncio. Na origem

do apelo do vosso coração gelado
- a embriaguez das grandes profundezas.
Ó rio, como vejo serem arrastadas

lá no fundo do teu curso de prata,
aquelas grandes deusas da paz.
Pedra, pedra, leva-me lá para baixo.
Sylvia Plath

quinta-feira, 26 de março de 2009

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e. e. cummings

terça-feira, 17 de março de 2009

[...]


“Eu amo-te” dizia ela quando estavam sentados no sofá com desenhos indianos de elefantes, faquires, odaliscas e vishnus e shivas, puído no local onde se colocam os braços e a cabeça, cheirando a humanidade, à sua humanidade, aos corpos cansados e suados, a incenso de lavanda e rosas que acendiam depois de fumar, a bebidas alcoólicas derramadas, a saliva, a cabelo. “Eu amo-te” dizia e tudo para ela estava perfeito. O armário de cerejeira com vidros baços, complexo na sua uniformidade, decorado minimamente com peças, que dizia ele serem obras de arte: a jarra redonda e achatada com fundo de madeira; o castiçal de cristal e prata, límpido e refulgente, que dava à sala um ar arrogante; os ramos de flores secas que jaziam como que abandonados, possuindo porém uma posição estratégica; as molduras antigas, de folha e chapa, cinzentas e amarelas, que continham fotografias a preto e branco dos dois, as bolas de cheiro de um azul e rosa pálidos, doentes, que exalavam um odor indefinido, extenuante nos dias de maior calor. No chão de pequenos tacos encerados, a manta de serapilheira, que fazia cócegas nos pés, enegrecida pelo tempo e pela sujidade, ambos difíceis de apagar; a mesa da sala de jantar, rectangular, precisa, cerejeira também, e, que, de fora para dentro, tinha um tampo de vidro baço seguido de outro de vidro transparente, onde, no centro, uma jarra de estatura média, de cristal transparente e vibrante, lisa por inteiro, servia de repouso a meia dúzia margaridas brancas e amarelas, mortas mas ainda viçosas; as cadeiras, de um moderno decadente, lisas nas suas linhas e despojadas de qualquer adorno ou desenho, transmitiam uma rudeza indesejada, uma história que ficou por acabar, uma tristeza proveniente de serem pobres; na parede, o quadro que Humberto comprara quando fora em viagem ao Brasil pintava-a de vermelhos e azuis amazónicos, os desenhos eram ancestrais e incompreensíveis, mensageiros de sons animalescos, de euforia e exageros, pequenas células de prazer e luxúria, era como se se pudesse encontrar ali um pedaço de vida decepado do progenitor, como se o próprio quadro esbracejasse e pedisse misericórdia; do tecto pendia um candeeiro de madeira, alumínio e vidro, com duas lâmpadas apenas, de uma simplicidade bela, solitária, angustiosamente triste, que triturava lentamente a própria treva. Tudo isto, todo este conjunto de coisas que Maria Joana ignorava, era o que a ajudava a compreender a natureza da vontade quando dizia “Eu amo-te”. E ela dizia estas palavras sem sentir toda esta imensidão de objectos que não falavam mas guardavam segredos, absorvendo a simples acção da vida humana, guardadoras de histórias de pessoas, desde o seu nascimento até à sua morte, provocando-a muitas vezes, como o candeeiro de mesinha de cabeceira da dona Eulália que, coitada, amava tanto a sua elegância até ao dia em que o marido, bêbedo até à ponta dos cabelos, o arremessara à cabeça dela, matando-a, porque o jantar não estava na mesa às quatro da manhã, quando chegara a casa da vadiice.
[…]

terça-feira, 3 de março de 2009


a felicidade é uma coisa que não se sente nunca
não se pode sentir.
não sendo fatal é extraordinariamente viciante
e quando sentida em demasia torna-se altamente tóxica
causando danos irreparáveis.
a felicidade devia ser proibida
uma vez que não nos torna lúcidos nem conscientes do perigo
que corremos e faz-nos esperar demoradamente cheios de esperança
de que o nosso conceito de felicidade se concretize.
a felicidade devia ser abolida porque é muito cansativa
e repetitiva e sugestiva e receptiva e divertida e competitiva
que chega a raiar a própria iluminação de todo o ser
(se ela não for a própria iluminação de todo o ser).
a felicidade havia de ser morta
assim nunca teríamos que saber o peso da sua ausência.

Perfeição

Extenuaste-me. Como me extenuam as vozes que me chegam ao encéfalo.
São tantas.
São tantas e mesmo assim não conseguem. Sequer (rio). Não conseguem sequer
preencher o estreito canal que tenho entre os olhos e a consciência.
Uma vez disseram-me que escrevo como tu. E nesse dia não consegui
sequer (outra vez) discernir onde começava a voz que lentamente me esvaziava.
Escorri durante todos os segundos que consegui conter.
Até ser nada. Sequer (agora é um vício).




quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

em qualquer animal procuro uma ferocidade que me possa causar medo
porque o medo é um nervo que precisa ser acordado
continuamente
em qualquer animal procuro uma semente que ainda não tenha nascido
para tomá-la decididamente
e tornar o prado repleto de flores na minha memória um abismo
muito difícil que o tempo não ultrapasse

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Conheço-te?


O conhecer é uma coisa estranha. "Não é nada mais que uma quantidade de pormenores. Há espíritos que vêem ao longe e outros que só vêem de perto. Nunca fui capaz de ver as coisas que estão muito perto de mim. Por exemplo: tenho muito mais ideia do que seja o Parténon do que a minha própria casa."
John Steinbeck

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009


Pequenas papoilas, pequenas chamas infernais,
sois inofensivas?

Estremeceis. Não posso tocar-vos.
Ponho as minhas mãos por entre as chamas.
Mas nada queima.

E fico exausta quando vos vejo
estremecer assim, pregueadas e rubras como a pele da
boca.

Uma boca há pouco ensanguentada.
Pequenas orlas de sangue!

Há nela um fumo que não consigo tocar.
Onde está o vosso ópio, as vossas cápsulas nauseabundas?

Se eu pudesse esvair-me em sangue ou dormir!...
Se a minha boca conseguisse desposar uma tal ferida!

Ou os vossos licores me penetrassem, nesta cápsula de
vidro,
trazendo-me a acalmia e o silêncio.

Mas sem cor. Sem nenhuma cor.
Sylvia Plath

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

As Regras


entre os pés uma memória deslocada qualquer membro
revela um propósito verdadeiramente solitário uma membrana
que finge voluntariosamente um caminho que nunca foi
percorrido a história é contada e recontada tantas vezes quantas
se inspiram as locomoções de cada polegar instintivamente
é procurada uma língua inexistente quase que demente
esse sofrimento de origem desconhecida qualquer vontade
é reflectida sem ponto de entrada ou de partida somente
rebelião intrínseca de cada sentido dividido à mais ínfima
intenção como se a vida não fizesse sentido só porque
acaba.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009


o homem não pode descer a montanha
preso na circunscrição de um único nome
que delimita rigorosamente o espaço da queda

o ar é um nutriente que nunca lhe matará a fome
e a montanha é ele mesmo carne da sua entranha
a possibilidade da claridade à espera que a sombra ceda

sábado, 7 de fevereiro de 2009

"I will wade out till my thighs
Are steeped in burning flowers
I will take the sun in my mouth
And leap into the ripe air alive
With closed eyes
To dash against darkness
in the sleeping curves of my body
I shall enter fingers of smooth mastery
With chasteness of seagulls
Will I complete the mystery of my flesh"
Björk Guðmundsdóttir

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

CARTA

"Além dos meros requisitos de viver e de se reproduzir, o que o Homem mais deseja é deixar uma recordação de si mesmo. Talvez uma prova de que na realidade existiu. Deixa essa prova na madeira, na pedra ou nas vidas das outras pessoas. Este desejo profundo existe em toda a gente, desde o rapaz que faz bonecos numa parede até ao buda que grava a sua imagem no espírito de uma raça. Esta vida é tão irreal! Creio que chegamos mesmo a duvidar que existimos e andamos por aí a provar a nós mesmos a nossa existência."

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009


eu não quero partir de um passado que nunca existiu
perder ou ganhar uma consciência que me atenua
os actos não me quero sentir observado por mim
mesmo ou sequer separado ausente envidraçado
numa idade que não é a minha não me apetece
outra vez o jogo da sorte da vida ou da morte não quero
ser constituinte apenas de um fio devidamente enrolado
não quero e não posso porque não tenho passado.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009


a nossa sombra é dourada como é
dourado também o nosso pó acumulado
nas fendas que existem entre as palavras
que delimitam erroneamente o nosso espaço.
onde está a luz que engulo da lâmpada acesa
pensando beber da claridade mais enxuta
o brilho do meu corpo está só em cada passo
que sai erradamente isento de mim
como se pudesse docemente romper-se
e ser verdade (ainda que ausente quando chega o amor)
de volta emancipada ao jardim.

um dia a minha dor andará ao teu lado
acompanhando a culpa culpando a culpa
pelo jogo que prendemos entre as mãos
curando crateras cravadas coerentemente
em um vale que desenhamos veementemente
acreditando na possibilidade de haver mais.
tudo está explicado no átomo mais
profundo
e a ordem das coisas é só um grão de pó.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

À chuva

preciso de me aquecer por dentro criar
invisível a escada que me suporte
um prisma desnecessário
Preciso de uma história devagarinho
um colapso qualquer uma partida
e de me encontrar sóbrio de propósitos
sumido em mim mesmo
punido por querer concentrar o provérbio
num único olhar Preciso de uma vontade
que a intenção ainda não criou
uma alternativa mesmo que estranha
que traduza por onde vou em muitas línguas
Ah eu preciso preciso preciso
Conhecer o trajecto Incerto Curto
Intransponível Incorrecto Plausível
De cada uma das hipóteses

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

[intimacy]


Tu fazes-me chuva miúda amiúde escorrendo
Por entre as fendas dos meus dedos lavando
O histerismo dos meus gestos cápsula sorvendo
Cápsula bebendo cais sobre mim num acto relevando
As cicatrizes abstractas do meu paladar vencendo
As montanhas exactas que fingiram enganando
A ordem extraordinária das coisas. És uma planta
Que nasce ao contrário
Morrendo

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

de ouro eu oiço vozes que palpitam
em cima dos meus ombros folgando o meu peso
e o peso de todas as palavras que existem
de mim escapa uma fúria incolor um fruto qualquer
sem qualquer odor que escondo num lugar remoto
a minha vergonha é agora também uma escarpa assim
densa imensa uma sentença suspensa em mim
no lugar que todos os órgãos deviam ocupar
de ouro é o ar que me ocupa o espaço
por dentro comendo-me sem reservas o calor
sem filtro vácuo engrenagem motor ou velocidade

entre mim e eu próprio não existe qualquer intimidade.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Castigo


Livre se eu fosse completamente livre
Viveria só na superfície lisa
E ouviria o som da erva a crescer
Sem qualquer promessa de felicidade
Longe e isolado de qualquer cidade
Fervendo e arrefecendo sem medo de perder
O bulício esquecido do movimento das pessoas
Se eu fosse livre não haveria castigo algum
Que me coubesse na existência nenhum
Mandamento.



sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Vértigo

Aqui onde os corpos são planos
construí a minha arca da aliança: receptáculo,
oratório, reservatório: aqui, onde a luz atinge
a torre, a minha cabeça, tenho um vazio
estomacal, uma sombra de luz. Não tenho onde
construir-te, física e espectacularmente, apenas
os pilares da minha memória, a subjectividade
de cada lobo, a complexidade de cada sinapse.
Aqui. Nos meus braços tenho as marcas da tua
passagem, da tontura branca que deste e deste e deste
sempre, ininterruptamente, veloz. Se pudesse criar
um mundo, um outro, tu serias a vertigem inata,
do meu corpo contra a gravidade.
Aqui, as horas são recém-nascidas e o tempo é sempre
mais do que aquilo que quero. Onde plantar a semente
(tua) que trago debaixo da língua?
Entre as lágrimas do teu corpo e a saudade.

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