quinta-feira, 14 de outubro de 2010

cuidadosamente

teodósio
está farto de favores
e de jóias
se ardósia fosse masculino seria
ardósio
seria
outro nome
virginia woolf cheia de pedras
nos bolsos

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

independência


a obsessão por um carácter é normal

eu costumo desenhar quatros
várias vezes
de várias formas
em vários sítios

distorcidos camuflados imperceptíveis
mas eu sei que eles são quatros
ainda que imperfeitos
escondidos assustados invisíveis

não podem ser outra coisa

quinta-feira, 24 de junho de 2010


há uma folha branca diante dos meus olhos.
há uma distância que eu não consigo percorrer,
um alcance que não tenho.
que horas são?
parece que os ponteiros estão aqui,
ruminando qualquer coisa que ainda não está sólida,
pêndulos na minha cabeça, nos meus braços,
quantos tenho?
no meu corpo a maré arrasta a noite remanescente,
árvores submarinas, os meus pulmões,
pétalas caídas no fundo de um saco.
a manhã é uma camisola,
um estado em que me encontro,
como palavras pesquisadas num dicionário,
sem sentido nenhum, depois.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

o medo ficou para trás



o medo ficou para trás
ainda nas sete da manhã
não vás
que o sol é uma ostra
fechada uma casa
de chá e a tua porta é im-
portante é como uma
pirâmide importada

f

lácida tenho tonturas
constantes abre-a
para que eu possa entrar
e beber água.


a tristeza é uma substância que corre no meu sangue
quando levanto o boletim de análises ela está lá
exponencial
como uma hormona que não sabe o seu lugar
na cama na estrada na floresta na igreja
esqueci-me da luz acesa toda a noite
e toda a noite olhei para ela

quinta-feira, 3 de junho de 2010


os insectos já não me mordem
pretos ou perdidos no zumbir
das asas presos no calor apático

sem sangue que se esvaia
ou algum tipo de derrame
psicóticos
não se alimentam sequer
da escuridão

terça-feira, 13 de abril de 2010


mito do homem

eu procuro nas páginas frondosas do livro,
debaixo do banco onde me sento, no comboio,
na música ininterrupta, orvalho secreto
por entre as folhas incorruptíveis, neblina na orla
da margem. eu procuro debaixo da cama, na sombra
ou na parede erguida, mistério das cartas fechadas,
vapor escondido nas gavetas do móvel da cozinha,
transborda, transmite, transporta, transcreve
transversal a distância entre mim e a soleira da porta,
eu procuro debaixo do tapete, debaixo do vaso,
arrastei as cadeiras, abri o portão e liguei a luz,
procuro no caminho, debaixo das vides, por entre a erva
dos campos: barulho das coisas quietas, cheiro dos animais
dormindo, vapor debaixo da camada de terra
fresca, rasgada, eu procuro esgaravatando,
perfuro até sentir as unhas dormentes,
até as minhas unhas anoitecerem de tão negras,
sem estrelas, sem história, sem sentido.


(fotografia: joana moreira)

segunda-feira, 29 de março de 2010

o que passou pela cabeça do violinista em que a morte acentuou a palidez ao despenhar-se com sua cabeleira negra & seu stradivárius no grande desastre aéreo de ontem



mi
eu penso em béla bartók
eu penso em rita lee
eu penso no stradivárius
e nos vários empregos
que tive
pra chegar aqui
e agora a turbina falha
e agora a cabine se parte em duas
e agora as tralhas todas caem dos compartimentos
e eu despenco junto
lindo e pálido minha cabeleira negra
meu violino contra o peito
o sujeito ali da frente reza
eu só penso


mi
eu penso em stravinski
e nas barbas do klaus kinski
e no nariz do karabtchevsky
e num poema do joseph brodsky
que uma vez eu li
senhoras intactas, afrouxem os cintos
que o chão é lindo & já vem vindo
one
two
three


angélica freitas

quinta-feira, 25 de março de 2010



as portas estalam
e são as entranhas do silêncio
que habitam nesta casa.
não há magia nas janelas
elas dão para dentro
para um caos
inteligentemente ordenado.
há uma pergunta sôfrega
em cada minuto
escondida no gotejar da torneira
presa
no interior da ferida.
a chuva cai como um choro
de lágrimas pálidas
olhos sem sentido
observam os objectos
em teatro. lento
o vazio é um movimento
fugaz
didascália esquecida
no caminho
da sala para o quarto.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Casamento

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como «este foi difícil»
«prateou no ar dando rabanadas»
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos pela primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

adélia prado

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010



no caminho vê-se
ao longe a grande casa onde nasci
onde os prados entravam pela janela
e consumiam
religiosamente
a minha pele
rasa
pálida
embrionária
eu sinto
longinquamente
que já nada me pertence
que os olhos das rosas
estão vazios
murchos
e que os segredos se perderam
no meio das folhas
das árvores mais baixas
nos cheiros
escondidos das mimosas
uma voz chama

por um nome que me é familiar
mas já não sou eu quem passa
neste caminho
engolido pelas raízes.



(fotografia: Joana Moreira)

letra

  • Antes que Anoiteça - Reinaldo Arenas
  • A Raposa Azul - Sjón
  • o ano da morte de ricardo reis - José Saramago
  • estorvo - Chico Buarque
  • Lavoura Arcaica - Raduan Nassar
  • o rei peste - Edgar Allan Poe
  • dom casmurro - Machado de Assis
  • a subjectividade por vir - Slavoj Zizek
  • a campânula de vidro - Sylvia Plath
  • o assalto - Reinaldo Arenas
  • xix poemas - e.e. cummings
  • Vigílias - Al Berto
  • pastagens do céu - John Steinbeck
  • Pela Água - Sylvia Plath
  • Budapeste - Chico Buarque
  • O homem duplicado - José Saramago
  • O nome da rosa - Humberto Eco
  • O retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde
  • 1984 - George Orwell
  • Ariel - Sylvia Plath
  • Mrs Dalloway - Virginia Woolf