terça-feira, 17 de março de 2009

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“Eu amo-te” dizia ela quando estavam sentados no sofá com desenhos indianos de elefantes, faquires, odaliscas e vishnus e shivas, puído no local onde se colocam os braços e a cabeça, cheirando a humanidade, à sua humanidade, aos corpos cansados e suados, a incenso de lavanda e rosas que acendiam depois de fumar, a bebidas alcoólicas derramadas, a saliva, a cabelo. “Eu amo-te” dizia e tudo para ela estava perfeito. O armário de cerejeira com vidros baços, complexo na sua uniformidade, decorado minimamente com peças, que dizia ele serem obras de arte: a jarra redonda e achatada com fundo de madeira; o castiçal de cristal e prata, límpido e refulgente, que dava à sala um ar arrogante; os ramos de flores secas que jaziam como que abandonados, possuindo porém uma posição estratégica; as molduras antigas, de folha e chapa, cinzentas e amarelas, que continham fotografias a preto e branco dos dois, as bolas de cheiro de um azul e rosa pálidos, doentes, que exalavam um odor indefinido, extenuante nos dias de maior calor. No chão de pequenos tacos encerados, a manta de serapilheira, que fazia cócegas nos pés, enegrecida pelo tempo e pela sujidade, ambos difíceis de apagar; a mesa da sala de jantar, rectangular, precisa, cerejeira também, e, que, de fora para dentro, tinha um tampo de vidro baço seguido de outro de vidro transparente, onde, no centro, uma jarra de estatura média, de cristal transparente e vibrante, lisa por inteiro, servia de repouso a meia dúzia margaridas brancas e amarelas, mortas mas ainda viçosas; as cadeiras, de um moderno decadente, lisas nas suas linhas e despojadas de qualquer adorno ou desenho, transmitiam uma rudeza indesejada, uma história que ficou por acabar, uma tristeza proveniente de serem pobres; na parede, o quadro que Humberto comprara quando fora em viagem ao Brasil pintava-a de vermelhos e azuis amazónicos, os desenhos eram ancestrais e incompreensíveis, mensageiros de sons animalescos, de euforia e exageros, pequenas células de prazer e luxúria, era como se se pudesse encontrar ali um pedaço de vida decepado do progenitor, como se o próprio quadro esbracejasse e pedisse misericórdia; do tecto pendia um candeeiro de madeira, alumínio e vidro, com duas lâmpadas apenas, de uma simplicidade bela, solitária, angustiosamente triste, que triturava lentamente a própria treva. Tudo isto, todo este conjunto de coisas que Maria Joana ignorava, era o que a ajudava a compreender a natureza da vontade quando dizia “Eu amo-te”. E ela dizia estas palavras sem sentir toda esta imensidão de objectos que não falavam mas guardavam segredos, absorvendo a simples acção da vida humana, guardadoras de histórias de pessoas, desde o seu nascimento até à sua morte, provocando-a muitas vezes, como o candeeiro de mesinha de cabeceira da dona Eulália que, coitada, amava tanto a sua elegância até ao dia em que o marido, bêbedo até à ponta dos cabelos, o arremessara à cabeça dela, matando-a, porque o jantar não estava na mesa às quatro da manhã, quando chegara a casa da vadiice.
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letra

  • Antes que Anoiteça - Reinaldo Arenas
  • A Raposa Azul - Sjón
  • o ano da morte de ricardo reis - José Saramago
  • estorvo - Chico Buarque
  • Lavoura Arcaica - Raduan Nassar
  • o rei peste - Edgar Allan Poe
  • dom casmurro - Machado de Assis
  • a subjectividade por vir - Slavoj Zizek
  • a campânula de vidro - Sylvia Plath
  • o assalto - Reinaldo Arenas
  • xix poemas - e.e. cummings
  • Vigílias - Al Berto
  • pastagens do céu - John Steinbeck
  • Pela Água - Sylvia Plath
  • Budapeste - Chico Buarque
  • O homem duplicado - José Saramago
  • O nome da rosa - Humberto Eco
  • O retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde
  • 1984 - George Orwell
  • Ariel - Sylvia Plath
  • Mrs Dalloway - Virginia Woolf