
mito do homem
eu procuro nas páginas frondosas do livro,
debaixo do banco onde me sento, no comboio,
na música ininterrupta, orvalho secreto
por entre as folhas incorruptíveis, neblina na orla
da margem. eu procuro debaixo da cama, na sombra
ou na parede erguida, mistério das cartas fechadas,
vapor escondido nas gavetas do móvel da cozinha,
transborda, transmite, transporta, transcreve
transversal a distância entre mim e a soleira da porta,
eu procuro debaixo do tapete, debaixo do vaso,
arrastei as cadeiras, abri o portão e liguei a luz,
procuro no caminho, debaixo das vides, por entre a erva
dos campos: barulho das coisas quietas, cheiro dos animais
dormindo, vapor debaixo da camada de terra
fresca, rasgada, eu procuro esgaravatando,
perfuro até sentir as unhas dormentes,
até as minhas unhas anoitecerem de tão negras,
sem estrelas, sem história, sem sentido.
(fotografia: joana moreira)